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Massacre do Carandiru: 25 anos de impunidade

Após anulação de júris, processo deve chegar à terceira década antes de uma decisão final. Nenhum PM chegou a passar um dia na prisão, e envolvidos seguiram com carreiras intocadas.Dois de outubro de 1992. Sábado, véspera de eleições municipais. Uma rebelião explode após uma briga entre presos no pavilhão nove da Casa de Detenção de São Paulo, conhecida como Carandiru. O complexo abriga 7.500 presos, mais que o dobro da capacidade.

“Era um dia especial por causa das eleições. Não poderíamos permitir uma fuga em massa de mais de 7 mil criminosos”, disse ainda naquele sábado Pedro Franco de Campos, responsável pela pasta da Segurança Pública.

Duas horas após o início da rebelião, 362 homens de diferentes tropas da Polícia Militar paulista, sem nenhuma experiência em presídios, invadem o pavilhão armados com revólveres, submetralhadoras alemãs, escopetas, fuzis M-16 e cães. “O ataque foi desfechado com precisão militar: rápido e letal. A violência da ação não deu chance para defesa”, escreveu o médico Drauzio Varella, que trabalhava na prisão.

Pavilhão por pavilhão, cela por cela, os PMs disparam contra os presos. A ação se estende por meia hora. Quando as armas silenciam, os sobreviventes são escoltados para fora e agredidos com cassetetes e mordidas de cachorros em um corredor polonês.

Dentro do pavilhão, 111 presos perdem a vida. Do lado da polícia, nenhum morto.

O governo estadual evita num primeiro momento divulgar a escala do massacre. A contagem oficial naquele sábado indica apenas oito mortos. O total só é conhecido no domingo, meia hora antes do fim da eleição municipal. O então governador do estado, Luiz Antônio Fleury, é acusado de segurar a contagem para não prejudicar os candidatos apoiados pelo governo.

Impunidade

Passaram-se quase dez anos até o primeiro júri do caso. O primeiro a ser condenado foi o coronel Ubiratan Guimarães, comandante da operação. Sua sentença em 2001 chegou a 623 anos de prisão. Entre 2013 e 2014, foi a vez do grosso da tropa. Cinco diferentes júris resultaram na condenação de 73 PMs. Somadas, as penas passaram de 21 mil anos de prisão.

Mas nenhum deles chegou a passar um dia sequer na prisão. Ubiratan foi o primeiro a se livrar. Em 2006, no julgamento de um recurso da sua defesa, o Tribunal de Justiça de São Paulo entendeu que ele havia apenas “cumprido seu dever” e decidiu pela absolvição.

Em setembro de 2016, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) adicionou mais um elemento nessa saga de impunidade e morosidade: anulou todos os cinco júris dos 73 PMs condenados após recurso da defesa. Foi ordenado um novo julgamento em primeira instância, ainda sem data para ocorrer.

Como tanto o Ministério Público e a defesa recorreram da decisão, a possibilidade de um novo júri ainda está sendo analisada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Ainda vai restar à defesa acionar o Supremo Tribunal Federal (STF). Tudo isso deve provocar mais atrasos, e o processo deve entrar na terceira década antes de uma decisão final.

Em seu voto que anulou os júris, o relator do recurso, Ivan Sartori, que também é ex-presidente do TJ-SP, chegou a afirmar que “não houve massacre”. “Houve sim uma contenção necessária à imposição da ordem e da disciplina, tratou-se de legítima defesa”, disse.

Suas conclusões contrastaram com os elementos que apontavam para um massacre. Um deles foi exemplificado no segundo julgamento do caso, que abordou 52 das 78 mortes que ocorreram do terceiro pavimento do pavilhão nove do Carandiru.

O Ministério Público mostrou que 90% desses 52 presos levaram três tiros ou mais – 47 foram baleados na cabeça ou no pescoço. Laudos periciais também apontaram que não foram encontradas marcas de projeteis nas posições em que os PMs ocuparam no pavilhão, afastando a hipótese de um “confronto” ou disparos que partiram dos presos.

O MP também apontou que a conduta dos PMs não era exatamente nova, indicando que 24 dos 25 réus desse segundo júri já haviam matado 300 pessoas em ocorrências de resistência seguida de morte (sem relação com o Carandiru) desde o início da carreira de cada um até o ano 2000.

O recordista de casos era o tenente-coronel Carlos Alberto dos Santos, com 33 mortes. À época da decisão do tribunal de São Paulo, em sua conta no Facebook, Sartori respondeu aos críticos da sua decisão. “Outro infeliz, cooptado pelos pseudodefensores dos direitos humanos”, disse a um usuário.

Falta de laudos e perícia

À época dos júris de 2013 e 2014, especialistas já haviam apontado que dificilmente os acusados seriam condenados novamente em segunda instância. A própria Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que crítica a falta de justiça no caso, apontou que as turmas do TJ – muito diferentes de um júri – costumam dar mais valor para as provas técnicas.

Nas duas décadas e meia do caso, além da morosidade de Justiça, a defesa dos PMs sempre pôde contar com a falta de recursos para a realização de perícias no Brasil. Em 25 anos, nunca foram realizadas laudos das armas e o confronto balístico (determinar de quais armas partiram os projeteis que foram recuperados nos corpos).

Assim, a acusação nunca conseguiu individualizar a conduta de cada PM que tomou parte no massacre. Os desembargadores que reanalisaram o caso em 2016 acabaram entendendo que não seria possível manter a condenação sem determinar caso a caso qual PM matou cada preso.

Quando o primeiro grupo de policiais começou a ser julgado, em 2013, o juiz responsável por marcar o julgamento apontou que, após mais de duas décadas, os laudos provavelmente seriam inconclusivos por causa da oxidação do material.

A demora já fez com que vários crimes já prescrevessem. Entre eles estão 86 acusações de lesões leves atribuídas aos policiais que já tiveram sua punibilidade extinta após duas décadas.

Carreiras intocadas

Após deixar o cargo de governador, no final de 1994, Fleury continuou ativo politicamente. Em 2013, durante um dos julgamentos do caso, disse que a entrada da PM no pavilhão nove foi “legítima e necessária”. Em 1998, foi eleito deputado federal.

O coronel Ubiratan também seguiu na política. Em 2002, foi eleito deputado estadual em São Paulo. Seu número na urna era 11190, uma referência macabra aos mortos no Carandiru. Em 2006, foi encontrado morto em casa enquanto tentava a reeleição – desta vez usava o número 14111.

O secretário de Segurança Pedro Franco de Campos deixou o cargo dias após o massacre e se tornou diretor de uma faculdade. Michel Temer, hoje presidente da República, assumiu o lugar. Tanto Fleury quanto Campos nunca foram responsabilizados criminalmente pelo massacre.

Entre os policiais que executaram as ordens, quase todos permaneceram na PM. Durante o primeiro júri do caso em 2013, que envolveu 26 PMs, oito ainda estavam na ativa. Vários foram promovidos nos anos seguintes ao massacre. Dois participantes chegaram a chefiar a Rota, a temida tropa de elite da PM paulista, nos anos 2000: Salvador Modesto Madia, condenado no segundo júri do Carandiru por 52 homicídios; e Nivaldo César Restivo, acusado de tomar parte nas agressões aos sobreviventes após o massacre.

Apenas um PM que tomou parte na ação cumpre atualmente pena, mas não por crimes não relacionados ao Carandiru. Cinco meses após o massacre, Cirineu Letang, soldado que tomou parte na ação que resultou na morte de 73 presos no terceiro pavimento do pavilhão nove, cometeu o primeiro de uma série de assassinatos em série de travestis em São Paulo.

Foi preso pouco depois e cumpriu pena até 2011. Solto, voltou a matar 71 dias depois. Letang, ou o “Matador de Travestis”, como é conhecido na crônica policial, cumpre pena por esse último homicídio no presídio Romão Gomes, “a prisão de PMs” em Tremembé, na Zona Norte de São Paulo. Em dezembro de 2014, foi o réu do último júri do Carandiru e acabou sendo condenado a 624 anos de prisão. Tal como ocorreu com seu ex-colegas, também teve sentença anulada em 2016.

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