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Por que Notre-Drame mobiliza mais os milionários do que a miséria humana?

Enquanto milhares de vidas humanas se afogam no Mediterrâneo, retrato da desigualdade social global, certa elite econômica solidariza-se com um ponto turístico

O incêndio na Catedral de Notre-Dame, na capital francesa, soma-se a outras tantas tragédias ocorridas nos últimos meses. Contudo, a disparidade nas reações a este infortúnio francês e aos outros são esclarecedoras. Desta vez, a novidade verificou-se na prontidão com que bilionários de toda parte, incluindo do Brasil, se dispuseram a doar somas milionárias em prol da reconstrução desse monumento. Essa diferença de atitude da elite econômica entre esta e outras calamidades é bastante eloquente.

O conluio angelical que prontamente se escalou para reerguer a catedral parisiense é o mesmo de sempre: empresários do ramo da construção, acionistas de petroleiras, políticos, banqueiros, industriais da moda e da beleza, etc. Menos de 24 horas após o anúncio da campanha de arrecadação, Emmanuel Macron já contava US$ 339 milhões em colaborações. “Esta tragédia atinge todo o povo francês e, além disso, todos aqueles ligados a valores espirituais”, disse François-Henri Pinault, de 56 anos, CEO da holding Kering – controladora de marcas como Gucci, Alexander McQueen, Yves Saint Laurant e Balenciaga – que prometeu doar US$ 113 milhões. Mas a quais valores espirituais ele se refere afinal?

Oportunidades para se praticar a moral cristã não faltaram. Como de costume, a internet relembrou outras calamidades, como os desastres naturais em Moçambique, Malawi e Porto Rico, a crise de refugiados no Mediterrâneo, bem como o incêndio que destruiu o Museu Nacional do Rio de Janeiro, cujo acervo era um dos mais importantes do mundo. Por que romper com a timidez samaritana apenas agora? Bernard Arnault, dono da LVMH e o homem mais rico da França, retrucou que atitudes como a sua deveriam ser aplaudidas, e não criticadas. “É uma controvérsia vazia, é muito desanimador ver que na França você é criticado até mesmo por fazer algo pelo interesse geral.” Como a reconstrução de um símbolo da Igreja Católica, instituição por si só riquíssima, serviria ao “interesse geral” em meio a tantas outras catástrofes, muitas delas recorrentes e com perdas humanas inestimáveis? Importante lembrar que no incêndio da Notre Dame não houve perdas humanas, apenas materiais.

Parecemos estar diante de uma espécie de hipocrisia – de efeitos catastróficos – que se teima em reproduzir. Enquanto milhares de vidas humanas se afogam no Mediterrâneo, retrato da desigualdade social global, certa elite econômica solidariza-se com um ponto turístico. Sinto muitíssimo pelo patrimônio histórico e artístico que se perdeu. No entanto, é a humanidade que está em crise e nada deveria ser mais urgente que isso. Reerguer um objeto inanimado, símbolo de instituição cuja história abriga a promoção e comunhão de perseguições, genocídios, estupros e toda ordem de explorações, certamente não é uma prioridade. Arrisco-me a dizer que é quase a antítese do que o momento urge.

Aos mais atentos, esse incidente escancara contradições tanto divinas quanto capitalistas, arrancando a carapuça da hipocrisia: sobre a miséria humana muitas religiões e fortunas se escoram. Eis o xeque-mate. Não fosse isso a solução seria apenas uma questão de boa vontade.

Fonte: Site Barra
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