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‘Sensação de enxugar gelo’: médicos lamentam aglomerações enquanto UTI’s estão lotadas

Enquanto muitos estão nas ruas frequentando comércios lotados, indo à praia e a bares ou curtindo uma festa em uma casa de show, outros tantos lutam pela vida em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) exclusiva para o tratamento de pacientes infectados pelo novo coronavírus. Se para um cidadão comum, que tem ideia do risco que esse tipo de comportamento representa, essas cenas são lamentáveis, imagine para aqueles que presenciam diariamente o drama de quem tenta sobreviver em um leito de UTI e que se sacrificam para tentar ajudar essas pessoas.

E sentimentos como tristeza, revolta e sensação de estar ‘enxugando gelo’ foram vivenciados por dois médicos que trabalham na UTI exclusiva para covid-19 do hospital Jayme dos Santos Neves, na Serra, após serem convidados pela equipe da TV Vitória/Record TV a assistirem a vídeos de pessoas se aglomerando nas mais diversas situações — e, para piorar, sem máscara, na maioria dos casos. Os flagrantes foram feitos em praias, bares, boates, comércios lotados, terminais rodoviários, entre outros.

Enquanto assistiam às imagens, os médicos Bruno Valory e Sara Soares Lima comentavam sobre a falta de consciência de algumas pessoas, que aparentemente acreditam que o pior da pandemia já passou. Entretanto, não é o que os números apontam.

Segundo a atualização mais recente do Painel Covid-19, da Secretaria de Estado da Saúde (Sesa), nesta terça-feira (22) o Espírito Santo registrou a maior quantidade de óbitos, em 24 horas, desde o dia 1º de julho: 43. Além disso, mais de 2,3 mil novos casos da doença foram contabilizados no estado entre esta segunda e terça-feira. E essa grande quantidade de novos casos registrados diariamente tem como resultado o crescimento do número de pacientes internados em hospitais de todo o estado.

“A sensação é de enxugar gelo. A gente está trabalhando e todo dia dando notícia ruim para um pai ou para um filho, e as pessoas sem ter noção do que está acontecendo ou querendo não acreditar ou negar o que está acontecendo”, lamentou Bruno.

Sara ressaltou o contraste que há entre o comportamento da pessoa que ignora os riscos de contaminação e sai para se divertir em ambientes cheios, e de quem se sacrifica diariamente para salvar justamente essas pessoas que ignoraram o distanciamento social ou algum parente.

“Nós não temos cansaço, a gente não tem ‘tô de saco cheio da pandemia’, a gente não tem ‘quero férias, preciso ir para uma festa’. Nós não temos férias, não temos feriado, não temos ano novo, não temos final de semana para ir à praia, porque nós estamos lá cuidando desses que estão aí ou dos familiares deles. A sensação é de que parece que as pessoas não têm realmente consciência do que é humanização”, afirmou.

Para quem ainda duvida da gravidade da covid-19 e acha que todo esse discurso de isolamento social possui viés político, Bruno Valory deixa um recado. “[A doença] É real, existe e é grave. Não dá para politizar uma situação tão grave. A gente vê todo dia, a gente vivencia todo dia. É muito grave. Então a gente não está aqui falando para ficar em casa por outros motivos, e sim pelo motivo que a gente vê: pacientes jovens morrendo de forma muito grave. Uma doença que castiga o paciente, castiga a família, que fica sofrendo dias, castiga os profissionais de saúde: psicólogos, enfermeiros, técnicos, todos. A gente sofre muito com isso”, ressaltou.

“Não é bonito você ver um familiar saindo de dentro de um hospital com um caixão lacrado, sem nunca mais você ver o rosto dele. Não é feliz. O recado que eu dou é: pense direitinho na hora de você achar que a festa do final do ano vai te trazer uma alegria, porque ela pode te trazer choro em 2021. Então comemore o ano, comemore que você está vivo, comemore que sua família está viva, mas de maneira consciente. De maneira justa com todo mundo”, acrescentou Sara.

Reportagem especial

Sara e Bruno participaram de uma reportagem especial, produzida pela TV Vitória, que mostrou de perto a batalha pela vida de quem está internado em uma UTI para tratamento da covid-19.

A reportagem mostrou a realidade da pandemia vista do lado de dentro do Hospital Jayme dos Santos Neves, referência no tratamento da covid-19 no estado. É o retrato da realidade, registrado ao lado de quem luta contra a doença e de quem luta para salvar as vidas afetadas pelo inimigo invisível.

O hospital recebe pacientes de todo o estado. São pessoas de todas as idades que lutam, muitas vezes com forças reduzidas, em busca da vida. Do lado de fora, a proximidade das festas de fim de ano faz aumentar o movimento das ruas, praias e comércio. Já do lado de dentro da unidade hospitalar, o número de internações de pacientes infectados pelo novo coronavírus cresce em uma proporção inigualável.

Confira a reportagem completa:

De acordo com o chefe de redação da Rede Vitória, Thiago Bruniera, a proposta da reportagem especial foi, de fato, mostrar para o telespectador a realidade do interior de um hospital e dos profissionais que se dedicam, incansavelmente, ao trabalho de salvar vidas daqueles, muitas vezes, desconhecidos.

“Desde o início da pandemia, temos tentado entrar nas UTIs exclusivas para o tratamento da covid-19 no Jayme, que é o coração do combate assistencial no Espírito Santo. Na primeira onda, não conseguimos e depois os casos entraram em controle. Mas agora, desde que os casos voltaram com muito mais força, e as pessoas não estão dando a importância devida, quisemos entrar com imagens para tentar mostrar o que os médicos sempre falaram. É a essência do jornalismo: tentar fazer com que as pessoas vejam para crer”, disse Bruniera.

Beatriz Figueiredo, chefe de pauta da TV Vitória/Record TV, fez a produção para a reportagem. Ela foi a responsável, dentre outras funções, por entrar em contato com a Secretaria de Saúde e fazer os agendamentos para as gravações das imagens e dos depoimentos. Para ela, a exibição acontece em um momento importante, para que haja conscientização quanto aos cuidados que ainda são necessários.

“Para produzir o material, tínhamos as barreiras próprias do vírus. Depois que o material chegou, para nós assistirmos, foi uma carga emocional muito forte pra todo mundo. Eu ainda choro assistindo alguns trechos. É doído. Para mim, a parte mais difícil foi a parte emocional. Nosso desafio foi conseguir enxergar a verdade pelo olhar dos profissionais de saúde. É grave, sério e precisamos acreditar e enxergar o outro com realidade”, disse.

Não há reportagem para a TV se não houver imagens a serem exibidas. Enquanto a regra é se defender e se proteger dos locais com foco da doença, o cinegrafista Diego Simão, com todos os aparatos de proteção e segurança, teve a missão de adentrar no ‘olho do furacão’ para mostrar a realidade cada vez mais perto e real.

“Fiquei apreensivo. Enquanto todos fogem do vírus, eu estava entrando em um local de tratamento da doença. Então era certeza de que o vírus estava lá. Me preocupei, mas encaro como profissional. De alguma forma, isso seria necessário. Tomando todas as precauções possíveis para encarar o desafio”, relatou Diego.

Veja o relato dos profissionais envolvidos na reportagem:

Bruniera explicou ainda que a linguagem usada na produção da reportagem foi diferente do que, normalmente, é visto do dia a dia da televisão. “Fizemos essa produção de uma maneira diferente. Não tem um repórter contando a história. É um repórter cinematográfico e a história é contada pelos próprios médicos e funcionários. Tudo isso para tentarmos atingir ao máximo o propósito de mostrar a realidade da UTI e dizer ‘é isso que está acontecendo'”. explicou.

Para Beatriz, o momento é oportuno e é preciso mostrar que a realidade que muitos não ‘enxergam’ é diferente do que, de fato, está acontecendo. “Vimos o número de casos diminuir e brotou esperança no coração de todo mundo. As pessoas caíram no erro de voltar a viver no mundo normal, que de normal não tem nada. Estar lá dentro para entender o que os profissionais enfrentaram ao longo do ano e, agora, ver esses números crescendo novamente, faz com que nós, jornalistas, tenhamos essa vontade de estar por dentro de tudo. Estávamos mostrando de fora, mas precisávamos mostrar o que acontece dentro, em um leito de UTI. Há solidão, há desespero. Quem está de fora, em um mundo ‘normal’, precisava ver isso”, relatou.

Para Diego, estar ao lado dos profissionais que trabalham incansavelmente pela vida daqueles que lutam para se recuperar, fez com que o olhar sobre os enfermeiros e médicos se tornasse ainda mais admirável. “Conheci enfermeiros e médicos que estavam ali com muita dedicação. Foi emocionante ver de perto a correria e a atenção que eles tinham a cada segundo, a cada respiração, com cada paciente. Ver pessoas lutando pela vida, aumentou a minha preocupação. Vi pacientes lúcidos, mas que não tinham forças para nada. A única preocupação era respirar. Eles não tinham forças para falar ou para qualquer outro movimento. Isso me marcou muito”, contou o cinegrafista.

Quem também se emocionou ao ter contato com o material foi o editor de vídeo, Thiago Rosa. Apesar de não ter ido até o local das gravações, ele teve acesso ao material bruto e a oportunidade de ver, mesmo que por uma tela, a realidade existente dentro do Jayme. “Foi um trabalho difícil. As imagens são pesadas e precisamos levar, junto com a trilha, essa emoção. As cenas dizem por si só. Só de assistir, já dá para se emocionar. É chocante ver pessoas que estão em situações complicadas a ponto de perderem a vida. É um material pesado de ser editado. Nesse processo de edição a gente se envolve bastante. Eu fiquei emocionado ao finalizar a edição da matéria”, relatou.

Editar, produzir, escrever e filmar é a rotina de trabalho diária de todos os profissionais envolvidos neste material. No entanto, a reportagem exibida no Balanço Geral desta terça-feira (22) trouxe uma carga que emocionou e fez aflorar o lado humano de cada um dos profissionais. “Eu assistia a pandemia com a dor dos parentes. Hoje, eu enxergo a dor da perda e a dor de quem trabalha ‘enxugando gelo’, pois é essa a sensação que a gente tem. Elas estão lá para cuidar de quem elas nem conhecem”, contou Beatriz.

Diante da realidade vista e mostrada, Bruniera também relata que a visão sobre cada profissional envolvido na luta pelas vidas dos pacientes se tornou ainda mais admirável. “Minha percepção em relação aos profissionais de saúde, por mais que já fosse positiva, aflorou ainda mais. Hoje eu valorizo cada um deles com mais força”, finalizou o chefe de Redação.

Fonte: Folha Vitória

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