Venezuelano Trino Márquez considera um golpe militar como cenário possível para quebrar a relação cúmplice entre Maduro e o alto comando das Forças Armadas.
Doutor em ciências sociais e professor da Universidade Central da Venezuela, o professor Trino Márquez admite estar preparado para um cenário de transição política em seu país que não inclua na liderança o autoproclamado presidente interino, Juan Guaidó, mas um golpe militar no estilo dos que ocorreram recentemente na Argélia e no Sudão. Ele aponta como semelhança a insatisfação da classe dominante para esta solução “plantada dentro do oficialismo”.
No seu entender, os militares poderiam atuar como fiadores deste processo que considera inevitável. Classifica o regime liderado por Maduro como “uma calamidade, uma vergonha”, calcado numa relação de cumplicidade com os militares. Uma rebelião de quadros médios no Exército poderia também, segundo ele, romper este elo.
“Como sociólogo, tento examinar as tendências sem me aferrar a nenhuma delas. Gostaria que a transição ocorresse, conduzida por Juan Guaidó ou pelos dirigentes opositores e até com os setores mais moderados do chavismo. Mas isso é um ideal.”
Aos 68 anos, Márquez leciona há 45 e escreve artigos para diversos meios de seu país. Não acredita em intervenção militar ou guerra civil na Venezuela. Avalia que Guaidó cometeu um erro estratégico, no último dia 30, em sua tentativa liderar uma rebelião com o objetivo de implodir o regime, sem ter o apoio necessário para isso.
Como consequência, encorajado pelo fracasso de seus opositores e pelo apoio russo, Nicolás Maduro tenta debilitar a base de apoio de Guaidó. “Mas não se atreve a prendê-lo”, observa. Prova do recrudescimento da repressão a seus colaboradores são a prisão do vice-presidente da Assembleia Nacional, Edgar Zambrano, que foi guinchado dentro do seu carro por agentes da inteligência venezuelana, e a retirada de imunidade de dez deputados da oposição. Três deles se refugiaram, esta semana, em sedes diplomáticas para escapar da prisão.
Leia a entrevista concedida pelo sociólogo ao G1, por telefone, de sua casa em Caracas.
Líder da oposição da Venezuela, Juan Guaidó, discursa para apoiadores em Caracas — Foto: Carlos Garcia Rawlins/Reuters
O movimento liderado por Guaidó no dia 30 de abril não conseguiu mobilizar os militares e acabou por gerar mais repressão por parte do regime. Quais são os erros na estratégia de Guaidó em sua cruzada para uma transição de poder na Venezuela?
Trino Márquez – Os acontecimentos do dia 30 de abril foram um erro de cálculo. Houve uma tentativa de revolta cívico-militar. Aparentemente, Juan Guaidó tinha a expectativa de que, liberado Leopoldo López, o preso político mais importante do país, os militares se somariam ao movimento. Isso não ocorreu. Houve poucos pronunciamentos favoráveis. O movimento, que tinha como objetivo produzir a implosão do governo, fracassou, assim como foi um erro promovê-lo. A oposição não tem sido bem-sucedida em convocar saídas rápidas. Já houve vários fracassos nesta mesma linha. Neste momento, vemos aparentemente um alto comando militar agrupado em torno de Nicolás Maduro. Há uma espécie de co-governo na Venezuela entre Maduro e o ministro da Defesa, Vladimir Padrino López. O governo se fortaleceu pelo apoio que recebeu especialmente da Rússia e em menor medida da China. É preciso corrigir a ambivalência e a confusão que predominaram no apoio americano. São muitos os funcionários dos EUA que fazem declarações de maneira contraditória e Maduro aproveitou isso para se fortalecer.
A participação dos Estados Unidos prejudica Guaidó diante da opinião pública da Venezuela?
Trino Márquez – Não, o que prejudica é a confusão de políticos americanos. Alguns funcionários ameaçam com algum tipo de intervenção militar. Por exemplo, o Conselheiro de Segurança Nacional, John Bolton, ou Elliot Abrams, que trata de Venezuela, Cuba e Nicarágua, e vem sendo muito agressivo em algumas intervenções, e contemporizador em outras. O próprio presidente Donald Trump insiste que todas as opções militares estão sobre a mesa, sugerindo uma intervenção militar. Estas linhas cruzadas criaram confusão e expectativas que não serão cumpridas. A invasão à Venezuela é muito remota neste momento. Não conta com apoio internacional. Não conta nem sequer com o apoio de um presidente como Jair Bolsonaro, que já disse publicamente em repetidas oportunidades que está em desacordo e que não participaria.
O governo está fazendo um expurgo no Parlamento opositor, com prisões e retirada de imunidade de deputados. É o resultado da tentativa fracassada de derrubar o regime?
Trino Márquez – Sem dúvida. E ainda vai aumentar se não houver pressão internacional e ofensiva diplomática mais intensa por parte dos aliados da democracia venezuelana. Isto ocorre porque Nicolás Maduro sente que tem inimigos dentro e fora do governo. É importante atacar a oposição para debilitar a base de apoio de Guaidó. O governo não se atreve a prendê-lo ou retirar a sua imunidade. Tem medo de uma possível reação do governo norte-americano. Tanto o presidente Trump quanto demais altos funcionários já insistiram que Guaidó é intocável e que haveria duras consequências contra Maduro. Acredito que ele não tem vontade de desafiar os EUA. Então trata de debilitar toda a base de apoio institucional que Guaidó tem e atacar seus colaboradores próximos. Esta vai ser a estratégia agora: atacar lateralmente Juan Guaidó. Maduro se sente encorajado porque a rebelião de 30 de abril fracassou. E a postura da Rússia de apoio a ele é determinante. Estamos falando de um governo que negou qualquer forma de negociação que implique a realização de eleições livres e transparentes. Sabe que vai perder.
Membros da Milícia Bolivariana participam de marcha em frente ao Palácio Miraflores, em Caracas, em 2017 — Foto: Federico Parra/AFP
A expressão “guerra civil” tem sido muito utilizada nos últimos dias. O senhor acredita nesta ameaça?
Trino Márquez – Acredito que é muito remota. Na Venezuela, a população que foi armada pelo chavismo e pelo “madurismo” é composta pelos coletivos treinados por cubanos e iranianos. São os grupos que estão com Maduro. A população que luta pela democracia está desarmada e já produziu as maiores manifestações na América Latina em 20 anos. São mobilizações prolongadas e de natureza pacífica. Quem promove a violência é o governo. Por outro lado, para que se produza uma guerra civil é necessária uma fratura das Forças Armadas. Isto, tampouco, é previsível. O alto mando militar forma parte do regime. Aqui não se pode falar de cumplicidade das Forças Armadas, mas uma associação entre Maduro e os militares.
Maduro entregou o país aos militares, que se transformaram numa espécie de corporação, numa sociedade anônima. Têm o controle da PDVSA, que é a principal indústria do país e foi destruída porque são péssimos gerentes. Controlam a distribuição de alimentos, assim como o contrabando da gasolina para Brasil e Colômbia. É uma grande corporação que governa o país em conjunto com a elite civil do PSUV (o partido do governo).
É quase impossível pensar que vai haver uma fratura no Exército, salvo se houver uma rebelião da parte dos quadros médios. O alto comando está unificado em torno de Nicolás Maduro.
Como a oposição ainda pode ganhar o apoio dos militares, já que o alto comando goza de privilégios e os dos quadros inferiores têm medo?
Trino Márquez – A única maneira é que a oposição e a comunidade internacional interessada em resolver o problema da Venezuela motivem os militares a se somarem ao movimento de resgate da democracia. A saída poderia ser ganhar os militares pela ideia de eleições livres e competitivas num curto prazo. E um acordo sobre um programa de transição, como ocorreu na Colômbia ou na Espanha, após o fim do franquismo, ou na África do Sul, com o fim do apartheid.
Qual seria o papel dos militares neste processo de transição?
Trino Márquez – Em primeiro lugar, poderia ser o de fiadores do programa de transição, que deveria ter o estatuto de lei, será cumprido, e a violência não volte a eclodir. Recordemos que na Venezuela o governo armou uma milícia de um milhão de pessoas, embora eu acredite que esta cifra esteja exagerada. É um exército grande. E também há os chamados coletivos, que são grupos de paramilitares que funcionam como uma polícia armada.
Para que a Venezuela não seja dominada pela violência, seria melhor ter a presença das Forças Armadas para dar tranquilidade a este processo de transição e garantir o processo eleitoral.
Por outro lado, é muito importante que os militares entendam que desfrutaram privilégios desmedidos, o que não ocorreu em nenhum setor do país. Não haveria represálias, é importante dar algumas garantias de que não seriam condenados.
Mas Guaidó garantiu anistia aos militares que colaboraram com o governo e esta medida não surtiu a adesão desejada.
Trino Márquez – Exatamente. Não teve o efeito esperado. Mas é preciso insistir para ganhar o apoio dos militares. Sem eles é impossível pensar num processo de transição e num processo de mudança.
Nicolás Maduro caminha ao lado do ministro da Defesa da Venezuela e membros militares durante sua visita a um centro de treinamento militar em El Pao — Foto: Divulgação via REUTERS
O senhor tem a sensação de um desgaste no campo de Guaidó?
Trino Márquez – É um desgaste natural de um processo complicado, houve erros. A direção opositora projetou a imagem de que era possível um acordo e que a mudança seria mais rápida. Superestimaram a força opositora e o apoio internacional, que foi basicamente diplomático, com todas as ambivalências e contradições. As democracias latino-americanas foram bem aproveitadas por Nicolás Maduro, que não acredita na democracia e apoia-se num regime autoritário e expansionista como o de Vladimir Putin. Estes são momentos de incerteza. Não quer dizer que Guaidó esteja derrotado e que o movimento que surgiu em janeiro, esteja derrotado.
O que o faz acreditar que o movimento opositor ainda tem fôlego?
Trino Márquez – Várias razões. Primeiro, Maduro continua sendo um mandatário impopular, rechaçado por mais de 80% da população, isolado internacionalmente e em meio a uma crise financeira terrível porque não consegue empréstimo internacional. Ninguém quer investir na Venezuela. Segundo, a crise econômica e social é muito aguda e galopante. E terceiro, Guaidó segue tendo um enorme apoio popular tanto em Caracas quanto em outras regiões do país. Depois do fracasso de 30 de abril, terá que recompor a força e atuar politicamente. A política é assim: tem momentos muito duros, como esse. E a pressão sobre Maduro para que ele negocie vai continuar. Já são 25 os deputados que nos últimos quatro anos foram atacados pelo regime. É certo que tudo vai piorar.
O senhor tem dúvidas de que o regime de Maduro chegará ao fim?
Trino Márquez – Teoricamente, o governo de Maduro teria que durar até 2025. Dada a quantidade de fatores que intervêm nesta crise, a pressão internacional, o isolamento, este quadro tão complicado, é muito difícil que o governo possa sobreviver estes seis anos sem que antes haja um acordo para promover uma saída do tipo eleitoral. Não quero dizer que vá implodir. Um cenário possível é que haja mudanças na cúpula do governo. Pode haver um golpe no estilo que acaba de ocorrer no Sudão ou na Argélia, em que os militares tiveram que intervir para destronar ditadores.
Isso significa que a solução para esta crise pode não passar por Guaidó?
Trino Márquez – Sim, claro. Este é um dos cenários possíveis, uma saída ao estilo de Egito, Sudão e Argélia, quando o bloco dominante está descontente.
O governo de Maduro é uma calamidade, uma vergonha e está arruinando o país. Sei que os militares estão se beneficiando de maneira obscena deste Estado em decomposição.
Os EUA estão exercendo esta política de pressão sobre o governo Maduro e não vão ceder. Assim como Colômbia e Brasil e a União Europeia vão endurecer suas posições. O custo para os militares manter Maduro será muito alto. Um cenário possível é uma saída plantada dentro do oficialismo. Não seria um golpe ao estilo clássico latino-americano, não seria um “quartelaço”, seria um maduraço. Seria uma saída com participação civil, dos setores opositores moderados, num governo de transição que permita normalizar o país, que está anômalo. É preciso viver aqui para entender o estado de decomposição e desarticulação. Nada funciona bem. Não se consegue uma caixa de fósforo. É um país inviável, um Estado falido.
O senhor está preparado para este cenário de golpe?
Trino Márquez – Estou preparado para qualquer cenário, tento compreender o que está ocorrendo, examinar as tendências sem me aferrar a nenhuma delas. Gostaria que a transição ocorresse, conduzida por Juan Guaidó ou pelos dirigentes opositores e até com os setores mais moderados do chavismo. Mas isso é um ideal. E na política nem sempre os ideais se cumprem. Eu observo que é difícil manter Maduro, apesar de não ter dúvida de que ele demonstrou uma habilidade excepcional para sobreviver à crise. Mas transformou-se no principal obstáculo para que a Venezuela avance como um país normal.
Fonte: G1