Quando as anomalias em fetos provocadas pelo vírus da zika começaram a surgir em 2015 no Brasil, pesquisadores descobriram que o vírus tem uma “preferência” por células que vão dar origem a neurônios. Quase três anos depois, a surpresa é que esse mesmo vírus que deflagrou uma emergência de saúde pública por aqui pode ser usado para o tratamento de crianças com tumores cerebrais.
O zika poderá ser usado como terapia porque as mesmas células que ele gosta de atacar em fetos estão presentes em alguns tumores. Essa premissa deu a largada para uma série de iniciativas para terapias de cânceres cerebrais: uma delas, por exemplo, foi feita na Unicamp com o glioblastoma; a de agora, foi uma iniciativa que reuniu pesquisadores de grupos diferentes da USP e do Instituto Butantan.
Nessa iniciativa, pesquisadores trataram, pela 1ª vez em cobaias que receberam células humanas, dois cânceres mais comuns em crianças: o meduloblastoma e o tumor AT/RT (tumor teratóide rabdóide atípico). O meduloblastoma é um tumor cerebral que tem sua origem nas células da medula. Afeta em torno de 25 crianças a cada 1 milhão e atinge mais comumemente crianças entre 4 a 5 anos. Já o AT/RT, é mais comum até os dois anos.
Apesar de feito em cobaias, os pesquisadores inseriram tumores humanos nos animais: com essa estratégia, conseguiram testar o potencial da terapia para tumores em indivíduos. É por esse motivo que o estudo já fala diretamente de tumores que afetam em crianças.
Depois dos testes, o zika fez o tumor desaparecer em 9 cobaias e ainda teve efeitos positivos sobre a metástase (quando o câncer se espalha para o restante do organismo). Importante lembrar que os testes feitos no Centro de Pesquisa sobre o Genoma Humano e Células-tronco da Universidade de São Paulo são iniciais, mas promissores.
“Estamos empolgadíssimos. Ficamos tão emocionados que, a cada fase da pesquisa, a gente se abraçava. Vimos que o vilão pode ser um bem-feitor”, lembra a pesquisadora Mayana Zatz.
O estudo foi publicado nesta quinta-feira (26) no prestigiado “Cancer Research”, a publicação científica da American Association for Cancer Research. O trabalho teve como primeira autora a aluna Carolini Kaid, doutoranda da USP e orientanda do pesquisador Keith Okamoto, professor do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva da Universidade de São Paulo, que também assina o trabalho.
Carolini fez as cirurgias para a implementação de tumores e injetou o vírus do zika no local. Ela também acompanhou a evolução do tratamento, informa o Núcleo de Divulgação Científica da USP.
A pesquisa teve a coordenação da Mayana Zatz, também da USP, e contou com a participação de outros pesquisadores. Também o Instituto Butantan, diz Mayana, foi um parceiro importante pelo conhecimento da instituição com o vírus da zika.
Detalhes e resultados do estudo
Para testar o vírus da zika nos tumores, pesquisadores selecionaram camundongos transgênicos sem sistema imunológico. “Isso era importante para que eles não rejeitassem as células humanas”, conta a geneticista. Depois disso, essas cobaias receberam células similares à presente em tumores de meduloblastoma. Por fim, os animais foram injetados com o vírus da zika selvagem, o mesmo que infectou fetos.
Em um acompanhamento de três meses, eles perceberam que 20 cobaias tiveram o tumor reduzido; e, em 9 delas, o tumor desapareceu por completo. “Também verificamos que não havia vestígios do tumor na coluna vertebral, um indicativo que o zika também é eficaz contra a metástase”, diz Mayana.
“São resultados inéditos. A gente sempre espera que a pesquisa que a gente faz tenha uma aplicação prática. Ver o zika tratando tumores em crianças será um resultado que não terá preço.”
A pesquisa teve um grupo-controle (quando cientistas separam um grupo de cobaias que não vão receber o tratamento). Assim, pesquisadores também viram a evolução do tumor em camundongos sem terapia com zika. O resultado? Eles morreram em duas semanas.
Os caminhos da pesquisa
Mayana Zatz explica que a pesquisa teve um longo caminho. Antes, em um dos estudos feitos com gêmeos de mãe infectadas com vírus da zika, os cientistas perceberam com mais clareza como o vírus consegue infectar as células que dão origem aos neurônios (chamadas de neuroprogenitoras).
Ainda, para entender melhor a ação do zika, pesquisadores testaram outras linhagens de tumores (próstata, intestino e mama) e perceberam que o vírus não teve a mesma ação. A preferência dele mesmo é para tumores de cérebro; e, como mencionado acima, especialmente para essas células “criadoras de neurônios”. A partir desses achados, os cientistas da USP começaram a pesquisa com o meduloblastama.
fonte :g1